A 'pharmacia' de outrora

A 'pharmacia' de outrora

sábado, 26 de outubro de 2013

V - Considerações sociológicas sobre a matéria médica contemporânea e o declínio da fitoterapia





Era de se esperar que após ter conquistado sua independência política nosso pais optasse por isolar-se do velho mundo e dos países europeus.

Sucedeu-se no entanto exatamente o contrário pois enquanto Portugal dominara a colônia com mão de ferro, o régio monopólio determinava, quanto possível, uma situação de isolamento.

A qual com grande agravo era tolerada ou melhor suportada por seus habitantes.

Em tal situação era mais do que natural que cada qual buscasse remediar a situação valendo-se dos recursos disponíveis na terra e da tradição ancestral.

Em certo sentido a pressão exercida pela metrópole contribuiu para que nossos antepassados valorizassem 'suas coisas'.

A independência política no entanto determinou um paulatino arrefecimento desta tendência geral na medida em que propiciou a importação de manufaturas e produtos de origem européia ou como se dizia então civilizada.

Desde o princípio nossas elites perceberam a necessidade de fazerem-se distinguir-se da gente comum por meio de um aparato material importado e portanto de alto custo.

Assim enquanto as máquinas era trazidas da Inglaterra e da Alemanha, tecidos, perfumes e medicamentos eram mandados buscar na França. Em certo sentido a estrutura política do antigo regime empreendeu algum esforço no sentido de valorizar as coisas próprias do Brasil e por estabelecer um certo equilíbrio entre nossas raízes coloniais e ancestrais e a francofilia.

Tanto os manuais a exemplo do Chernoviz quanto os primeiros medicamentos aqui produzidos na segunda metade do século XIX ainda sabem a matéria médica nacional em termos tradicionais, mesmo quando levamos em consideração o grande número de vegetais 'importados'.

Após a implantação do novo regime todavia, sob os auspícios do cientificismo positivista, tudo quanto dissesse respeito a nossas raízes tradicionais: monarquia, catolicismo, colônia, indigenismo, etc passa a ser encarado cada vez mais como sinônimo de atraso em comparação com as luzes procedentes a Alemanha, Inglaterra, França e Estados Unidos da América do Norte.

Desde então as fórmulas e medicamentos de origem estrangeira - européia ou norte americana - vão sendo introduzidos numa escala cada vez maior e suplantando os produtos produzidos pela indústria nacional a partir de nossa própria matéria médica.

Destarte nossa Granado é obrigada a ceder diante da recém chegada Bayer e a fontoura a limitar suas aspirações diante da Merk. Pouco a pouco os grandes laboratórios internacionais - paladinos da indústria sintética de medicamentos - vão estendendo seus tentáculos e conquistando o mercado nacional de carater urbano.

Mesmo quando sabemos que o emprego de seus produtos saia mais caro do que o emprego dos produtos generosamente oferecidos por nossa boa mãe terra... ou pelos similares produzidos por nossas 'pharmácias' como a de Peckolt ou a Veado de ouro.

Quem no entanto deixaria de recorrer a magnésia se Phillips para fazer uso da cascara sagrada ou da sene? Ou de trocar a aspirina por um chazinho de arruda???

A gente do campo certamente que continuava a servir-se dos chás, xaropes, cataplasmas, etc transmitidos de geração em geração... o máximo que ali chegava em termos de 'indústria' era o balsamo alemão ou o elixir sanativo.

Nas cidades todavia a situação era bem outra.

Pois ali o recurso aos chás, xaropes, cataplasmas, etc já eram encarado por muitos, a semelhança das simpatias, benzimentos, rezas, etc como sinônimo de folclore e, consequentemente, ridicularizado pelos mais esclarecidos e bem posicionados. Estes por sinal estavam quase sempre a par das últimas descobertas feitas pela grande indústria farmaceutica dos países civilizados...

Acontece que os trabalhadores ou não podiam arcar com os elevados custos da matéria médica 'civilizada' ou logravam adquirir tais drogas a custo da alimentação inclusive... de modo que acabavam trocando doze por meia dúzia ou recorrendo ao fetichismo i é, as orações, rezas, benzeduras, amuletos, exorcismos, simpatias, feitiçaria, etc

Era de se esperar que com o passar do tempo algo fosse feito no sentido de consertar esta triste situação.

Refiro-me a atitudes bastante simples como incentivo as pharmacias e a medicina tradicional, cursos de medicina natural ou fitoterapia, a criação de hortas e harbarios comunitários, a distribuição gratuita de matéria medica natural sob a forma de folhas ou pomadas, etc Tais iniciativas no entanto foram implantadas com mais de meio século de atraso em meados dos anos 80/90 i é a menos de trinta anos!!!

Na verdade o que aconteceu de fato foi uma ruptura total quanto aquela espécie de equilíbrio, vigente desde o segundo Império porém cada vez mais fragilizado desde a proclamação da República. Após a segunda guerra mundial a indústria farmaceútica 'civilizada' determinou monopolizar o mercado e aniquilar a concorrência exercida pela medicina tradicional. Desde então e por quase três ou quatro décadas assistiu-se ao apogeu da matéria médica sintética...

Foi quando a quase totalidade dos medicamentos oferecidos passou a ser batizada com nomes retirados da tabela periódica; assim Brometo de Ipratrópio, Bromidrato de fenoterol, Cloridrato de fenilbutazona, Butilbrometo de escopolamina, etc, quando antes diziamos: tintura de arnica - sabendo muito bem do que se tratava (a tal arnica) - xarope de grindélia, emplastro de erva de bicho, etc

Neste contexto recorrer a chás, xaropes, emplastros, etc equivalia - ao menos nas grandes cidades - a expor-se a mofa dos vizinhos... ou a assinar atestado público de pobreza ou ignorância. Desde então - em diversos contextos - o conhecimento ancestral que vinha sendo passado de geração em geração extinguiu-se quase que por completo passando diversas ervas empregadas por nossos ancestrais - caruru, bertalha, juciri, capiçoba, douradinha, angélica, borragem, bardana, valeriana, etc - a ser encaradas como mato ou mesmo como ervas daninhas!!!

Tal como se sucede ainda hoje - embora em escala menor - grande número de pessoas, inclusive de crianças pequenas; alimentava-se precariamente embora estivessem situadas num contexto natural por assim dizer farto ou ao menos suficiente i é com ora pro nobis, agrião bravo, labaça, mentruz pimenta, trapoeraba, cidreira, alfavaca, alecrim, gervão, folha da costa, etc medrando pelos quintais, calçadas e praças...

Tudo quanto era sabido por nossos avoengos caiu em desuso e esquecimento devido ao brilho artificioso dos produtos alimentícios e drogas trazidas dos Estados Unidos ou da Europa a peso de ouro... Para os ricos foi apenas um mecanismo de 'separação social'... para os pobres que reproduziram ingenuamente esta ideologia tosca no entanto foi o cúmulo da desgraça.

Pode o rico caso deseje e queira debochar do muru muro, do jaborandi, da babosa, etc e cobrir-se com elemi, sândalo, almíscar, nardo, olíbano, mirra e benjoim...

Ao bom povo no entanto - isto é aqueles que mais sentem no bolso - cumpre fazer uso inteligente de tudo quanto temos a mão em termos de matéria alimentícia, médica e odorífera. De nossa parte podemos acrescentar inclusive que nossa flora nada fica devendo as outras e que todos os elementos exóticos acima citados cá encontram bom sucedâneos, se é que os nossos elementos não caiba a palma. Assim o suavíssimo óleo de mutamba... assim o vetiver, assim o capim limão, assim a citronela, etc, etc, etc

Felizmente indústrias como a Natura e a phytoervas tem sabido explorar cada vez mais este potencial nos últimos anos.

Quanto a matéria médica não é escuso informar ao amigo leitor que cerca de duas décadas o ministério da saúde publicou uma lista com algumas dezenas de plantas tradicionalmente empregadas aqui no Brasil. Desde então uma série de testes laboratoriais passaram a ser feitos com tais plantas tendo em vista comprovar a eficácia das mesmas. Até 2008 eficácia de 38 havia sido irrefragavelmente demonstrada.

Apesar disto a maioria dos quase quatrocentos medicamentos fitoterápicos registrados na Anvisa ainda recorre a matéria médica estrangeira ou importada, enquanto um nicho ainda bastante tímido tem buscado dar continuidade a obra profética do Dr Peckolt e a explorar nossa biodiversidade, uma das mais ricas do planeta.

Cumpre informar ainda que cerca de uma década a fitoterapia conquistou e tem ampliado - ainda que muito lentamente - seu espaço no SUS fazendo parte de diversos programas.

E podemos já antever os ganhos obtidos pela sociedade brasileira na medida em que explorarmos mais e melhor nossos recursos e nossa biodiversidade ao invés de recorrermos preferencialmente as drogas sintéticas fabricadas pelas grande multinacionais... sem levarmos em conta os efeitos colaterais produzidos por tais drogas e o montante de capitais lançados para fora de nosso pais. No instante em que optarmos por valorizar o que é nosso, isto é, a biodiversidade reinante em termos de matéria médica e científica lucraremos tanto em termos de saúde quanto em termos de dinheiro ou de economia.







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